13.4.13

Matriarca Maria

Minha tia querida, casada com um irmão mais velho de meu pai, ficou viúva dele a algumas semanas. 
Apesar das adversidades, ela nunca reclamava, sempre esteve alegre, gosta de passear, ama a vida,  tem uma felicidade interna que é dádiva a poucos. 
Analfabeta, frequentou o "Mobral" à noite, na década de 70. Aprendeu a grafar seu nome completo, depois saiu.
Meu tio estava demente a quase dez anos, o que a impeliu a deixar de trabalhar na feira livre, ofício que adorava.
Deixando os filhos neste encargo, passou a cuidar do tio "Lia" (Elias) em tempo integral. Sendo cinco anos mais nova que ele, hoje conta 83 anos de idade. 
Lúcida, terminando um tratamento de câncer de pele ao redor da boca, tem dificuldade em andar devido a uma fratura na perna a alguns anos.
Nesta queda, na lavanderia, clamava pela ajuda do tio em prantos, e dava a mão para que a levantasse. Ele sorria com o seu cérebro restante (de criancinha de 3 / 4 aninhos), achando que ela estava a brincar pelo chão.
Certa vez ele sumiu (foram umas três vezes) e embrenhou-se num pasto próximo a seu bairro. Estava descalço numa região com diversas macaubeiras. Foi encontrado pela família aflita, com os pés repletos de espinhos.
O casal teve treze filhos: Joana, Maria Alice, João, Lourdes, Vera, Cecília, José, Elza, Ana Luisa, Angela, Leonardo, Andreia, Juliano. 
Nenhum filho faleceu na infância ou juventude; joão morreu atropelado com mais de 50 anos, os outros estão todos bem.
Viveram no sítio do vovô até que o caçula estivesse grandinho e já estavam no ofício da feira-livre, talvez por uns vinte e cinco anos. 
Imaginem o que este casal passou com treze criancinhas, num casebre roceiro, sem ao menos dipirona para abrandar uma febre. Quantas noites em claro, quanto choro infantil e adulto.
Distavam quatro km da rodovia asfaltada, onde passava ônibus para a cidade. No finalzinho da estada na  roça, ele já tinha um jeep, mas antes disso havia somente as pernas.
Me lembro da Tia preparando o jantar. Vinha mais cedo da roça, onde trabalhava desde o raiar do dia. O feijão já estava cozinhando a algumas horas pela filha Elza (a mais velha em casa, pois as outras cinco já viviam numa casa alugada aqui na cidade, para trabalhar).
Ela fazia arroz (socado no pilão para expelir a casca - ficava todo quebradinho), mexia uma polenta enorme, com fubá trocado por milho na fazenda do Tio Antenor (tio meu, não deles). Como "mistura", fazia couve ou chuchu refogado da horta, ou abobrinha batida, alguma salada, ou batata.
O Tio e o filho mais velho (que nessa época era o José, pois o João já morava e trabalhava no hotel em Águas da Prata), ganhavam um ovo caipira frito. Era costume alimentar melhor os braços trabalhadores. O restante dos ovos eram para vender na cidade, assim como os frangos.
Ela repartia a comida em pratos, baciinhas de alumínio e latinhas de marmelada. Todos tinham um quinhão definido e não podiam repetir. Os maiorzinhos, que ainda tinham fome ao término do jantar, pediam emprestado, uma "cuiada" (colherada) aos menores, para pagar amanhã.
Aos domingos, ela matava uma galinha caipira e dividia a todos, inclusive aos filhos da cidade que vinham de visita. Alguns ganhavam o pé e a pontinha da asa, outro herdava o pescoço, outro recebia o coração e fígado, sendo os melhores pedaços reservado aos trabalhadores.
O quase vegetarianismo forçado era comum na zona rural, naquelas famílias enormes e paupérrimas. A carne era usada como um temperinho esporádico. Na minha casa, não era diferente, mas minha mãe tinha um casal. Meu irmãozinho (o terceiro filho) nasceu quando eu já passava dos doze anos.        
Os quatro filhos da tia Maria geraram nove netos. Das nove filhas, sete se casaram e geraram mais 16. No total, são 25, com cinco bisnetos. Todos os filhos têm casa própria, inclusive as duas solteiras (que mantém alugadas). 
A primogênita Joana não se casou e vivia desde adolescente na cidade de São Paulo, como empregada doméstica em tempo integral. Ainda hoje, mesmo aposentada, vive e cuida da mesma patroa, velhinha, moram em Ubatuba.
A Elza vive com a mãe aqui na cidade, e enfrentou a barra dos cuidados com o pai. Aposentou-se e continua trabalhando a décadas num consultório médico. Almoça em casa, a comidinha preparada pela tia Maria.
O Tio morreu nos braços dela, num domingo de manhã, após gritar com "dor de barriga". Em seu cérebro já desgastado, restava apenas as memórias de um menininho, que considerou assim o ataque cardíaco.
A segunda filha, M. Alice, é aposentada pelo INSS e auxilia o esposo no sítio deles. Agora cuidará do primeiro neto, quando a filha voltar ao trabalho (da licença maternidade).
O João faleceu a quase uma década, deixou um casal de filhos, que já estão jovens. A Lourdes aposentou-se muito nova na Prefeitura (probleminha simples "na cabeça") e tem uma loja de roupas.
A Vera mora em seu sítio, faz feira livre e mantém um restaurante lá mesmo, aos finais de semana. A Cecília casou-se com cerca de quarenta anos e teve um filho. É enfermeira aposentada e continua a trabalhar no hospital (dava os banhos no Tio).
O José é feirante e tem duas filhas moças: uma morena e a outra muito loira, que puxou à tia Maria. A Ana casou-se com o primo Romeu (primos em primeiro grau), vive na grande São Paulo e dá aulas de matemática a pouco tempo (só formou-se agora).
A Ângela vive pertinho da mãe e trabalha em consultório médico também. Está se aposentando e vai continuar, pois a sogra faz tudo em casa. O Leonardo é pedreiro (fui professora de seu filho mais novo).
A Andreia é policial feminina e seu filho menor estuda na sala onde leciono, só que com minha colega da tarde. O Cacula Juliano é feirante e é vizinho da mãe; tem três filhos.
Foto minha - Mamonal.

4 comentários:

  1. Anônimo15/4/13

    Uma bela história de vida. Cheia, como as histórias bonitas
    Beijinho (ainda) do hemisfério Norte

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    1. Então, Carlos, estas famílias numerosas estão em extinção. Eu mesma só tenho o "Fiotão", com 27 anos...
      Foi uma emoção ímpar vê-los todos no velório do pai, inclusive a viúva e filhos do irmão falecido.
      Outros beijos.

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  2. Ola.

    Ao ler este texto lembrei-me das familias antigas em Portugal que tinham muitos filhos, viviam com muitas dificuldades e no entanto conseguiam vencer na vida. E se calhar até eram mais felizes do que as de agora, apesar de as familias de agora terem mais facilidades que naquele tempo nao havia. Também vejo nesse texto, o que me parece ser uma homenagem à sua tia e à força dela. é uma historia de vida que so mostra a determinaçao em lutar destas gentes e é um bom exemplo.

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    1. Realmente, Bruno, sou o que sou, me inspirando muito nesta guerreira "de bem com a vida".
      Vivi quase dez anos perto deles e guardo diversas recordações.
      Nunca soube que eles tenham dado nenhuma surra nos filhos, criavam com serenidade e amor.
      Um abraço.

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