20.1.14

Blanche XLVI

O mormaço de verão baforeja a montanha dos caprinos. Dia claro e gargalhoso, com a branca lua cheia a espreitar pelo cantinho  do céu. Blanche propõe a Tom que conduza o indiozinho consigo no mergulho à piscina natural, no decurso em que ela alinhava o aromático ensopado de lebre.
Todinho encabulado, porém solícito, ele acode a ideia e ambos dirigem-se à tulha. Ela concede panos, roupa limpa e sabão, num áspero balaio de palha, daqueles que se prende balançadinho à cintura. É hábito este banho caprichado, todo final de sexta-feira, devido à descida da serra ao sábado.
O garoto, aclimatado ao nado cotidianamente, levantou-se arrebatado, com adminículo de Tom e do rijo cajado. Um olharzinho sorridente flechou-os farrista. Externamente, a chaga encontra-se cicatrizada, contudo o padecimento ósseo denuncia que a perna ainda inspira ponderação.
Agarrado ao franzino, porém robusto ombro esquerdo de Tom, segue manqueteando morosamente pela picada curta, com fortuna mesclada a apreensão. Blanche lhe emite um bonitinho sinal de ânimo e volta a seus quefazeres, na estreita cabana de troncos.
Instalam-se cautelosamente à oposta borda d'água, sob o primário degrau da cachoeira límpida, com frescos respingos a lhes cutucar. Neste lance inicial, como quem ensaia a se despencar, a poética queda d'água, apesar de alargada, não atinge meros dois metros de altitude.
Diversas rochas deslocadas em volta do poço, permitem transpô-lo aos pulinhos, de lado a outro. A mata ciliar sombreia as margens e confere sensação (falsa) de acolhida: pisar em penedo úmido, recoberto por lodo, é tombo quase certeiro, com possível sisudez.
Seguindo abaixo pelo planalto, a cerca de duzentos metros do  vertiginoso despenhadeiro, com mais três quedas absurdas, o regato espraia-se capilarmente, de abraços com o majestoso pedregal. É ali que Blanche iliba roupas, quarando-as ensaboadas ao sol e batendo-as na fraga, a fim de desencardi-las.
Tom, com a inconveniente timidez queimando-lhe a face, esfrega parte após parte, o tenro corpo nu do adolescente, com sabão e bucha natural. O deslizarzinho da espuma camufla o desconforto que sente ao toque num corpo humano.
O mocinho, habituado a constantes atividades grupais, age com a naturalidade devida, indicando-lhe os locais que requerem maior zelo: as costas e os pés. O restabelecimento do peso devolveu-lhe a maciez juvenil, afinal. Após semanas acamado, seus pés varonis tornaram-se sedosos e graciosos.
Para o enxague, Tom, posicionado com as pernas descerradas ao interior do tanque, todo ele encafifado, pega-o cuidadosamente nos braços e o deposita numa pequena laje submersa. Sem vacilo, o rapazote sai nadando desenvolto naquele bolsão d'água, com cerca de dez metros de diâmetro. 
A cena, espontaneamente estética, tira o fôlego de Tom, não apenas pela lindeza daquele corpo translúcido, contudo também pelo nítido benefício que a água demonstra na reabilitação do alanceado. Faz agora sua própria assepsia, entremeando furtivos olhares atônitos àquele ser transformado em brilho, que esbrangeu a barreira do universo físico: galgou uma dimensão onde é exclusivo, pleno, perfeito. 
Mergulhando e emergindo, o indiozinho avança mais e mais, sofregamente a nadar, num impulso desvairado em reaver-se, reassumir-se. Tom, prostra-se de bruços na laje seca, com o sol a absorver-lhe a água do banho, não ousa quebrar aquela magia, não ousa adentrar a cena. Mantém-se à orla, como quem admira, suspenso no tempo, uma tela famosa.
Afadigada do aguardo, lá da varanda, Blanche desata a gritar, arreliada já. Tom desperta da hipnose e conclama o púbere, que também volta a si. Arrastado à laje com airosidade, se enxuga desajudado, e com ânimo ímpar se escora no amigo para vestir-se e voltar.
Retornam silentes, porém perturbados, cada qual por seus motivos, quando Blanche os avista e admoesta irritada: o almojantar passa do ponto. O primordial ato de Tom, para acalmar-lhe os sobressaltos, é correr cachimbar, perdidão em dúvidas, suas lisérgicas e acalantadas cascas de bergamota.
Após a minguada refeição, devido ao desapetite, egressa-se ligeirinho, afobado, deixando a cargo de Blanche realocar o rapaz à tulha, para o descanso noturno. O menino cantarola, já na trilha, e ela percebe a atmosfera festiva... nada cita, apenas compreende que a ablução passará a ser diária, por fins terapêuticos. 

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