27.1.14

Passado...

Revendo a prima de Santo André, com que passei a infância roceira, ela me disse ter visitado o antigo sítio do Vovô, onde morávamos; andou por tudo aquilo. Perguntou se já fiz o mesmo. Não!
Ando por lá, na garupa da moto do Par, fui na escolinha (abandonada), fui aos arredores, chego lá em cima, à porteira... mas adentrar o passado... não dá. Alguma coisa me amarra.
Voltei lá uma vez, dois anos depois, e já tinha passado pelo estirão da puberdade. Eu bem maior, o sítio encolhido. Me senti muito mal. Não precisava mais me apoiar para subir o "barrancão", a casa virou casinha, as "arvonas" se encolheram estranhamente.
A mãe dessa prima havia mudado para a "minha" casa, fez uma horta onde era minha casinha de bonecas, colocou móveis que não eram meus. Bagunçou minhas lembranças.
A prima já vivia na cidade, com as irmãs mais velhas. Dos 13 filhos da Tia, só 3 ainda estavam lá. A casa da Vovó sem moradores. Desolação.
Vou lá? Não vou... ela me disse que há uma bela piscina abandonada sobre o nosso terreirão de secar café (lá era nossa quadra de esportes). A casinha dela, a 1ª, foi demolida e no local há um lago com patos sem donos.
A casa da Vovó, ao lado da minha, fica aberta e pode-se entrar, zanzar pelos cômodos fantasmas. A minha está fechada, porém com uma faquinha se abre a tramela de pau. 
Ela não entrou no quartinho que eu dormia com meu irmãozinho (falecido) numa cama de casal e colchão de capim (comprado - um luxo), tendo um banco (azul? dois?) com alguns mantimentos nos sacos, o moedor de café torrado afixado nele (o aroma me vem), a máquina de costura onde minha mãe trabalhava e a baciona encostada no canto, onde tomávamos banho com sabão de pedra. 
No quarto da mãe, tinha a cama com colchão de palha de milho desfiada (que fincava na gente), o "guarda-roupinha" e uma linda cômoda, cheia de enxoval bordado por ela, ano após ano de mocidade.
A minha janelinha de tábuas dava vista à bica d'água e ao terreirão, tudo acima, à floresta sem fim, após o pasto e plantações. A janela da mãe via a chegada, no oposto, quando era tempo de seca e o mato tava baixo.
A mãe só deixava entrar até a cozinha durante o dia; era regra geral. Na sala, que tinha a cristaleira repleta de presentes de casamento e uma mesa de quatro cadeiras, só as visitas!
Mas à noite ficávamos lá, os quatro, eu e o irmãozinho sentados no chão sobre saco de estopa. A mãe chuleava roupas à mão (dava acabamento nas costuras) e o pai contava causos.
Depois o Mingas (da fazenda ao lado) ganhou TV e o pai se ia lá, toda noite; então a Lisalda, moça do outro sítio, vinha prosear com a mãe. 
Tinha vez que dava um vazio, uma melancolia... sobretudo quando as visitas iam embora, aos domingos à tarde ou em dias de chuva. A imensidão oca ganhava volume.
Na verdade, é que eu já iniciava os hormônios da puberdade, aos dez anos. Aquela dose extra de serotonina que toda criança ganha, estava no fim, escasseando.
Na sala e cozinha só havia portas, sem janelas. O piso era vermelhão; e nos dois quartos era tijolos assentados. No teto, só telhas com frestas laterais onde o vento passava, no inverno gelado. A mãe jogava água aos sábados, para desempoeirar.
Na cozinha havia o fogão de lenha (de vermelhão), uma mesinha com quatro cadeiras, a talha de barro para filtrar a água, muita lenha armazenada atrás da porta. Isso não podia faltar, eu repunha sempre, buscando feixes nos arredores. 
O guarda-comidas, onde ela conservava, embrulhados numa toalha de mesa, os pães feitos no sábado, para a semana toda. No inverno seco, na quarta-feira já estavam duros, mas tínhamos que continuar comendo ... no verão úmido, emboloravam à quarta-feira. Era assim em toda a roça: cortava-se os focos de bolor e comia-se o restante, sem desperdício.
Nessa cozinha não tinha panela de pressão, garrafa térmica. Tinha um lindo pano de saco com arame, que servia de tampeiro. As tampas ficavam lá penduradas à parede, muito prático. No pano, a frase bordada: "Vim de longe, de além mar, para te adorar". 
Fogão a gás? Só quando mudamos para uma fazenda próxima, vendendo o gado. Lá, meu irmãozinho ganhou caminha de armar e dormia na sala. Quarto todo prá mim! 
Geladeira? Quando morávamos na cidade a bom tempo tivemos uma emprestada, vermelha. Parecia um ninho: só com água e ovos. Que "metideza", beber água gelada; doía os dentes pela inexperiência.
O limoeiro, de onde fazíamos nosso único refresco, não sei se ainda vive... as galinhas se empoleiravam nele para dormir. As abelhas jataí que viviam no alicerce de pedras, embaixo de meu quartinho ainda existem?
O nosso jatobazeiro continua nos aguardando, ansioso... o coqueiro jerivá clama pela criançada. A amoreira, de amoras brancas e leitosas, ganhou estranhamente uma santinha aos pés. Lá tinha um caminho com líquens no barranco, que pareciam carpete.
A mangueirinha onde meu irmão foi atacado por abelhas, virou mangueirona, apenas com os quatis a degustar seus deliciosos frutos. A outra mangueira onde a irmã desta prima caiu e quebrou (braço ou perna) também está solitária e triste.
Os animais domésticos: galinhas caipiras, galinhas d'angola, perus, cães, gatos, vacas, porcos, a velha mula "Tesoura", sumiram num passe de mágica.
Minha prima marejou os olhos enquanto contava, disse que o aperto no coração é violento. O passado vem a galope e nos atropela. Como podíamos viver tão naturalmente? Tão bichinhos?
Me lembro do telhado rodando, com monstros me sobrevoando; alucinações devido a febres altíssimas. Sensação horrível. Não havia termômetros, nem anti térmicos. 
A outra irmã desta prima, também presente, lembrou-se de que a mãe a levava ao outro sítio, quase desmaiada de febre e caminhando, para o "Zé Flosino" dar-lhe injeção, com agulha rombuda que usava em todo mundo, sabe-se lá com que remédio vencido... 
Para chegar ao "nosso" sítio, pede-se a chave ao vizinho do sítio anterior. Na mesma porteirinha de arame farpado, há um tecnológico cadeado agora!

Sem imagens, nenhuma corresponde às minhas.

6 comentários:

  1. Pois é minha amiga.
    Quando se volta já não somos os mesmos e nada de nossas lembranças ficaram intactas.Voltar aos campos verdes de nossos sonhos, correr entre bananeiras e morrer de medo nas noites de quaresma.Tudo fica nas minhas cronicas e dá uma saudade, que dói como estrepada em arame farpado.

    Uma linda semana amiga.
    Meu abraço mineiro.

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    1. Oi, Tonin!
      Só quem viveu as entranhas da natureza sabe valorizar.
      O aroma único da moita de bananeira, onde montávamos cabana; a "dor acostumada" dos estrepes de espinhos, arame, gravetos pontiagudos; as corridas às cegas por entre a vegetação alta; o afastamento de adultos por dias inteiros ao léu...
      Anda sou aquela caboclinha: Tenho uma saúde de ferro - da terra ferrosa do sítio; tenho um estado emocional equilibrado; sei viver e consigo ser feliz com poucos bens materiais.
      Ai! Agora estou louca para ler suas crônicas... é outro blog?
      Excelente semana também a ti,
      outro abraço quaaaaase mineirinho.

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  2. Gostei da tua narrativa tão sincera e despretensiosa.
    Normalmente, as pessoas nunca se referem aos tempos difíceis e envergonham-se do seu passado simples atnda que seja honesto.
    Um grande abraço.

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    1. É verdade, Majo, mesmo porque à época nos sentíamos inferiores à primas urbanas, "mais evoluídas".
      Sou tão apegada ao passado, que todo mês durmo na roça de minha outra avó, onde morei bem menos tempo.
      As crianças de hoje, com vida artificial, nem sequer imaginam as façanhas a que nos propúnhamos!
      Outro abraço a ti.

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    2. Acho ótimo ires te revigorar, física e psicológicamente, no campo.
      Não há nada mais saudável, para todas as idades. Bj.

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    3. Realmente, Majo, recarrego as energias e também a geladeira, com alimentos orgânicos.
      Outros bjs.

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