1.4.14

Comer umbigo

Eu brinco muito com as crianças usando a expressão "Comer barriga", que é o mesmo que "marcar toca", "dar bobeira", "comer bronha", contudo comer umbigo nada a ver.
Eu falo de comer mesmo: é umbigo de bananeira, prato tradicional nestas bandas em antigas épocas de escassez. 
Principalmente na fase de escravidão, restos de carne suína eram acrescentados a esta "gororoba margosa" para render. 
Mais tarde entre o povo caboclo, também era uma mistura no prato típico arroz com feijão. A necessidade levava a este consumo, que virou tradição e virou cultura.
Me lembro de ter comido na infância, na casa duma coleguinha negra, Noêmia. Eram daqueles negros bem tradicionais, paupérrimos, de família numerosa. Lembro que não gostei muito, contudo era o que tinha...
Funcionava assim: a gente visitava as amiguinhas aos fins de semana ou nas férias, sempre após o almoço, que geralmente se servia às 10 h 00. Era falta de educação chegar na casa dos outros antes de almoçar.
Para o lanche da tarde, a criança mais velhinha juntava numa panela, os restos do almoço (arroz e feijão). Juntava o suco de um limão inteiro e os "matinhos" que arrecadava no terreiro. Comíamos todos ao chão, em volta da panela quente, uma colherada para cada criança.
Os adultos? Estavam todos na roça, nem desconfiavam da bagunça!  
Foi numa dessas brincadeiras de "comidinha" que experimentei o umbigo de bananeira, que se diz "imbigo" na zona rural. Sobrou do almoço porque não era bom.
Com essas idas à serra todo final de semana, estou resgatando receitas de infância, matando as saudades. A mãe não fazia, eu comia nas fazendas vizinhas, com as coleguinhas de escola.
Aproveitei um cacho de banana-prata que estava de-vez e retirei o umbigo. 
Trouxe já separadas individualmente, pois duram muito mais. Acondiciono em caixa para não amassar. A mãe e a avó ganharam seu quinhão.
Esta única banana madura me deu o sinal de que o cacho estava em ponto de ser colhido.
Em casa, retirei as pétalas velhas (roxas) e preparei demoradamente, pondo de molho na água e limão, aferventando três vezes em limão e bicarbonato de sódio para tirar o amargor causado pela nódoa, que na roça dizemos "nódea".
Fiz com carne moída e ficou bom, porém não rendeu. Tanto trabalho para pouco resultado.
O Fiotão gostou, pois parecia cebola roxa em grande quantidade junto à carne moída. Dizem que parece palmito, mas não é para tanto...
Não fotografei porque fiz ao jantar, e minha máquina "boa" só tem flash quando bem quer!
Na outra semana, peguei das bananas nanicas, mais baixas. Tirei de quatro cachos ainda em crescimento.
Nesta fase, sem pétalas velhas, já está ficando esbranquiçado e pronto para picar. São lindíssimos corações.
 O tempo de tirar a foto foi suficiente para começar a escurecer, devido ao excesso de nódoas.
Cortados em cruz, em água com limão e bicarbonato de sódio, por 15 minutos. Uma vasilha com água para mantê-los submersos.
Depois de tanto aferventar, gastando água e gás, preparei com bacalhau. Ficou pior que da outra vez, deixando um leve amargor ao final.
Para não perder, comi sozinha, e hoje coloquei numa torta de sardinhas com sobras. Ainda há um pouco congelado... só mesmo a torta para disfarçar.
Olha, não paga a pena pelo prato em si! Para quem comprar os limões e os umbigos (em locais tradicionais, custam 50 centavos cada), mais o gasto com água e gás, é preferível fazer berinjela com cebola roxa.
Vale pela tradição, pela saudade da infância, pelo prazer de recordar e pelo sabor exótico. Vale também pelo respeito à escassez, à escravidão, à dura vida cabocla.
O remanescente congelado, usarei num pão de sardinha, para não perder...

8 comentários:

  1. rsssssssssss..Quanto trabalho e assim ruim. Eu nem comeria, acho!rs Que pena,né? Nunca tinha visto falar desse prato ! beijos,chica

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    1. Oi, Chiquinha! É um prato mineiro bem tradicional - e eu estou quase em Minas...
      Na minha opinião, se parece mais com berinjela ou cebola roxa do que palmito.
      Se tiver coragem, tentarei sem carne para sentir o sabor autêntico.
      Outro beijão a ti.

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  2. ~ Foram tempos muito, muito difíceis.
    ~ Por aqui ainda se comem pratos dos pobres, alguns muito saborosos, como as açordas alentejanas.
    ~ Foi no livro de José Saramago, "Levantado do Chão", que eu me apercebi que vastas searas de espigas verdes ondulando ao vento, podem significar fome, dos que desesperam para vê-las maduras.

    ~ ~ ~ ~ A b r a ç o ~ s e m ~ c a l o r. ~ ~ ~ ~

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    1. Sim, Majo, à época da escravidão, os negros rurais, geralmente comiam apenas ao jantar.
      Tudo que havia no terreiro era aproveitado naquela panela tripé "ola" gigante, fervendo suspensa ao fogo.
      Os caboclos também comiam de forma alternativa, aproveitando o que da terra surgia, principalmente em época de entre safra.

      Quanto ao calor, aqui também ele cedeu: estamos com 28 graus.
      Beijão.

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  3. Olá Cristina
    Não conhecia esta forma de cozido, lembro-me que minha avó usava o coração da banana para fazer garrafada para bronquite, cozinhava com bastante mel até virar xarope, para minha filhona deu certo.
    Amiga desculpe minha ausência estava precisando.
    Estou com um blog novo, me renovando.

    http://criandoumsonhoaqui.blogspot.com.br/

    Beijinhos paraenses.

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    1. Oi, Vera!
      Já ouvi falar nos efeitos terapeuticos da flor da bananeira, embora não tenha feito uso.
      Quanto ao prato, o segundo que fiz não ficou bom devido ao leve amargor. Levei de volta à roça, onde as galinhas aproveitaram.
      Vou salvar seu novo blog.
      Outros beijos a ti.

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  4. Olá Cristina.

    Não conhecia a fruta "umbigo", nome curioso para se dar a uma fruta!
    Contudo, não deixa de ser um artigo interessante, que partilhei no G+.

    Beijos,

    Cris Henriques

    http://oqueomeucoracaodiz.blogspot.com

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  5. Boa tarde, Cris!
    Realmente o umbigo ou coração de bananeira se parece com uma bonita fruta, porém trata-se de uma flor. Ela fica dependurada logo abaixo do cacho de bananas.
    Devido ao excesso de nódoas desta planta, esta flor é amarga, daí o trabalhão para processá-la como alimento.
    Meu colaborador português aqui da oficina disse que em Portugal não há bananeiras, é uma planta tropical.
    Beijos calorosos do Brasil.

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