16.11.14

Saí da idade da pedra...

Eu vivi treze anos na roça zona rural, saí do sítio do Vovô com dez e meio, para outra propriedade. 
Era um tempo duro, sem dipirona nem termômetro, onde os "bichos" assustadores pairavam sobre a cama febril.
Era o tempo do banho em bacia de alumínio com sabão de pedra e toalha feita de saco, toda amarradinha em bicos.
Aquelas encostas íngremes, onde se plantava café, feijão e milho, entremeado à mata e ao pastão, com parcas vaquinhas caipiras que iam namorar lá nas terras do Tio Antenor, pro dono tentar progredir...
Tempos de muita chuva, muito frio e pouco agasalho. Criançada encravada na falda, que descia quatro quilômetros para ver a professora.
Tempo sem eletricidade, fogão a gás, panela de pressão ou garrafa térmica. Tempo rústico e calejado sem sofá ou colchão de espuma.
Tempo dos tampeiros de fio de arame com pano bordado, esticadinhos na parede. Tampas areadas sem pressa, um dos luxos da cozinha.
Fogão de lenha cheiroso, que defumava os moradores. Da linguiça e do toucinho, do café pro dia todo. E a lenha catada colhida deliciosamente por lá, em feixes de proseamento, pôr de sol e vento leve.
E a talha com água fresca, ou moringa ou jarrão. E a mesinha de pau, com gaveta prás "cuié". E o guarda-comidas pequeno, com o pão da semana toda. A latona de açúcar e um "saquin de sar".
Lá no quarto um banco com arroz, café torrado e feijão. O moedor perfumado que trabalha toda manhã. Liquidificador? Um pilão comunitário prá canjica e o arroz.
No paiol, o milho das galinhas, com debulhador e tudo! Na tulha, as sacas de café aguardando bom preço - o bem mais precioso e de ciclo anual.
No pasto a tesoura (mula velha) insiste, persiste. No mangueiro a porcada, e no chiqueiro os de engorda. Na bica se lava roupa, a cara e os trens. Se amola as ferramentas numa pedra sabão desgastada.
No limoeiro as galinhas fazem poleiro ao escurecer, enfeitam o limoeiro com o cacarejo e bater de asas. Se acomodam como podem e silenciam emfim. Noite fechada, olhos fechados, vento assopra a lamparina.
As abelha jataí no alicerce da casa e as arapuá na moita; o forno "de meia" com a Vovó, só usado aos sábados para o pão e nada mais. Sem leitoa, sem rosca, sem biscoito, sem broa, sem bolo. Só os pães de cada sábado...
Nas manhãs sem um relógio tudo é suposição, é treino estimar as horas e tocar a lida. A Vovó magrinha e enrugada a plantar alho, ervilha, banana maçã, palmas pro cemitério... o filho morto que não a deixa - Peter Pan a serenar.
Danone e azeitona - coisa ruim demais da conta. Carne de vaca? Imagine! Dá mais lucro o bicho em pé. Come-se o frango e o porco, que na lata se mantém. Há o peixe e a caça e pros outros dias abóbora, hortaliças.
Pessoas? Algumas, as mesmas. Novidade não se tem. Livros? Sei não... nem rádio, só crochê. Há o terreirão de café e o céu imenso de pisca-pisca. E os causos entre primos, competição - de xixi que escorre mais. 
Quase todo domingo, Vovô buscava cana, limpava e moía na engenhoca que morava debaixo da jaboticabeira, agasalhada por folha de zinco. Doce garapa, doce vida dura, tão doce!

6 comentários:

  1. A Cristina deve ter muitas experiências. Deve apreciar realmente o que de melhor a tecnologia nos oferece. Acredito que ainda se recorda com uma certa saudade, não a falta daquilo que não proporcionava uma vida mais cómoda, mas talvez sentimentos, carinhos e outras coisas que as crianças se recordam com saudade.

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  2. Guardo com nitidez os perfumes da mata, a refrescância do sereno, a textura da fruta no pé, a felicidade do (minguado) encontro humano, a adstringência da areia ao fundo do regato límpido!

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  3. ~ Nunca imaginei que a vida pudesse ser tão dura na viragem dos anos 60/70.

    ~ ~ ~ ÉS UMA VENCEDORA!! ~ ~ ~


    ~ ~ ~ ~ Grande abraço amigo. ~ ~ ~ ~
    ~

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    Respostas
    1. Eu fui ter rádio em casa, com nove anos, Majo. E só ouvíamos à noite, aquilo que o Pai queria ouvir (não podia gastar pilhas).
      Eu sentia falta de guloseimas da cidade, mas nem sabia que eram maléficas. A Mãe fazia doce de leite com banana (delícia), porém só de vez em quando.
      Todo o pessoal rural era assim - devido à escassês, valorizávamos mais a vida.

      Abração nostálgico

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  4. Anônimo7/8/16

    Ola Cristina, Vc tem ou conhece alguem que ainda tem algum pano bordado de tampeiro? Estou fazendo uma pesquisa sobre bordado antigo.

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  5. Olá!
    Eu nunca tive pano de tampeiro... A mãe, tias e avó tinha até pouco tempo.
    Acaba-se usando no cotidiano e eles se deterioram.
    Na área rural ainda se encontra, ou nos museus de cidadezinhas interioranas.

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